quarta-feira, 19 de maio de 2010

22/05/2010 - Programa sobre o Festival da Barranca

Nada acontece por acaso, segundo a teoria dos racionalistas. Talvez tenham lá suas razões. Menos no que se refere ao festival da Barranca. Este nasceu por acaso como os nenês de novembro, frutos da semeadura suada do Carnaval.
De todos os festivais musicais que se realizam no Rio Grande do Sul, nenhum é mais original do que o chamado "Festival da Barranca". Fechadíssimo na organização, só admite convidados especiais dos organizadores e é exclusivamente destinado a homens.
É unânime entre os barranqueiros a dificuldade de explicar o festival da Barranca para as pessoas do seu convívio diário.
As mulheres sabem que acontece algo muito importante para seus maridos, namorados e demais barranqueiros, mas, mesmo assim, convivem, diariamente, com a vontade de entender o que realmente acontece por lá.
Esse caráter íntimo faz da barranca um acontecimento especial para todos que, de alguma forma, têm contato com ela, e, por isso é um acontecimento de extrema relevância cultural para o Rio Grande do Sul.
Pelo menos desde 1965, artistas e amigos saíam juntos para pescar duas vezes ao ano. Uma vez, na época da Páscoa. A outra, em setembro, durante a Semana Farroupilha. A partir de 1972, eles oficializaram os encontros como Festival da Barranca. Desde então, durante a Semana Santa, um seleto grupo de músicos, poetas e amigos acampa às margens do rio Uruguai, entre Santo Tomé, na Argentina, e São Borja, no Brasil, para compor, tocar e celebrar, à luz da lua cheia, o que de mais valioso existe na cultura gaúcha.
E tem um diferencial em relação a outros festivais nativos: na noite da sexta-feira, uma comissão julgadora escolhe um tema e os barranqueiros têm até a noite seguinte para compor em cima do que foi proposto. O país Barranca possui até moeda própria: cédulas de Manduca são usadas para se adquirir as bebidas, já que as refeições são fornecidas pela organização.
O Festival da Barranca é realizado todos os anos a partir da Quarta-Feira Santa, a 17 km do centro de São Borja, em pesqueiro às margens do rio Uruguai.
Além de reunir algumas das maiores expressões do nativismo sul-americano, o festival também reúne personalidades políticas do cenário estadual e nacional. Apparício Silva Rillo e José Lewis Bicca, já falecidos, estão entre os idealizadores do festival no início da década de 1970.
É dado um tema para os concorrentes comporem em 24 horas uma música. Escolhida as melhores, então os vencedores vão até o centro de São Borja, apresentam-se para a população, em praça pública, e retornam ao local da Barranca em que os companheiros esperam. Uma bebemoração ao longo de quatro dias, com muito consumo de churrasco - o que para os mais católicos, constitui um sacrilégio.
O festival é só para homens. A presença feminina inibiria os participantes, que ficam à vontade, podem contar os mais cabeludos causos e, especialmente beber muito...
Os compositores de maior destaque são convidados a participar da parte musical - que só oferece prêmios simbólicos.
Os convites são pessoais e intransferíveis. E para participar o convidado tem que ser aceito pelo grupo.
O Troféu "Tio Manduca", homenagem a Cláudio Oraindi Rodrigues, presidente da comissão julgadora da 1a. edição do festival da Barranca, foi confeccionado pelo artista plástico Francisco Viana e conferido aos vencedores do Festival da Barranca até o ano de 2000.
Hoje encontra-se sob a guarda do Grupo Amador de Arte Os Angüeras, na cidade de São Borja.
O Troféu "Apparício Silva Rillo", foi instituído no ano de 2001, em substituição ao troféu "Tio Manduca" e, a partir dessa data, os vencedores do festival passaram a recebê-lo.
Uma criação do artista plástico Rossini Rodrigues, o troféu é uma homenagem à excelência poética e humana que Rillo emprestou à Barranca por quase trinta anos.
Mas pensar objetivamente a Barranca é como ouvir uma tertúlia sem gaita, como olhar a paisagem e não ver o homem, como cantar e não ter público. É quando se pede ajuda à emoção dos barranqueiros.
O festival é como uma quase utopia, um campo consagrado onde se pode ser artista e platéia ao mesmo tempo.Yamandú Costa diz que o lugar é um cantinho de sua memória onde sempre pode curar a saudade de seu pai, Algacyr Costa, parada para recarregar as baterias mas também a terra onde se chora para dentro e para fora.
O primeiro impacto da Barranca, especialmente sobre os gaúchos mais urbanos, é a geografia. Quem está acostumado ao ritmo vertical e urgente das grandes cidades tem de se acostumar com a paisagem horizontal de um rio que se move lentamente. O segundo choque chega por meio das palavras, e nem é através das tais empunhas (brincadeiras de duplo sentido correntes em qualquer universo masculino), mas da maneira como se pensa o que falar. O tom é basicamente afetuoso, geralmente ocupado por expressões como “figuraça” e “que tal”, ou por expressões tipicamente barranqueiras como “barbicachear” (verbo que se atribui ao índio impertinente, que não larga do pé do vivente).Mas o mais importante é perceber que mais importante que o sotaque ou o léxico é o jeito: gaúchos não respondem diretamente a uma pergunta, eles respondem contando uma história.
O festival funciona como um palco em tempo real, interativo e 24 horas no ar.A música e a poesia se instalam sob as árvores, ou a partir das tertúlias que se fazem dentro do galpão montado junto ao pesqueiro, que serve para os shows e para as refeições. E uma revelação se faz: o gaúcho não canta apenas milongas, como a lógica competitiva dos festivais nativistas exige: se canta e toca também o chamamé, a valsa, a milonga, o samba, a tirana, a canção, o xote.
Obs: Fotos de Flávio Campos Sartori

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